Monika: Gabriela, é um enorme prazer conversar com você hoje. Como uma mulher trans e ativista, sempre admirei sua incrível trajetória e o trabalho impactante que você realizou. Eu ainda estou longe de chegar no seu nível, mas estou muito animada para aprender com você e compartilhar sua história com meu público!
Mas antes de começarmos, deixe-me apresentar você adequadamente.
Você é uma mulher extraordinária que quebrou barreiras e estabeleceu novos padrões de visibilidade e liderança trans no Brasil e além. Fez história ao ser a primeira pessoa trans a ser reconhecida na lista Under 30 da Forbes Brasil, e seu impacto só cresceu desde então. A Bloomberg Línea te nomeou uma das 50 Mulheres de Impacto na América Latina, e a Billboard te reconheceu na lista Over 30.
Você fundou a Transcendemos Consultoria, uma empresa que ajuda as empresas a criar ambientes realmente diversos e inclusivos. Seu trabalho alcançou grandes organizações como Natura, Kraft-Heinz e Dasa, e não se limita ao Brasil - você está fazendo a diferença em toda a América Latina. Além disso, você tem sido palestrante em grandes eventos, incluindo os organizados pela ONU Mulheres e OIT, e até leciona em instituições renomadas como FAAP e Fundação Dom Cabral.
Pode-se dizer que você é uma das vozes trans mais influentes no Brasil hoje - e estou muito honrada de ter essa conversa com você!
Gabriela: Monika, muito obrigada pelas palavras. Fico emocionada e feliz pelo convite. É um prazer poder ter essa conversa com outra mana trans, que compartilha dos mesmos desafios que eu. Estamos juntas e podemos conquistar tudo o que merecemos e queremos. Acredito que é exatamente através de trocas, como essa, que conseguimos construir pontes e fortalecer nossa comunidade. =)
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"Estou muito orgulhosa do que construímos até agora." |
Gabriela: Acho que, como muitas de nós, nós empreendemos por necessidade. Eu comecei esse trabalho, em 2017, sem uma ambição de que isso poderia virar um negócio, de que eu criaria a Transcendemos. Eu estava na universidade, cursava Direito na PUC-SP e estava pensando no meu futuro, buscando estágio e pensando no que fazer da minha vida profissional. Eu não via pessoas como eu nos lugares onde gostaria de trabalhar.
Conversei uma vez com uma amiga cis, que trabalhava em um escritório jurídico, e ela me contou os desafios que existiam para mulheres nesses ambientes. Fiquei imaginando quais outros eu enfrentaria como mulher trans. Foi aí que decide fazer algo e comecei a oferecer um livro de boas práticas de inclusão, de forma gratuita, em alguns lugares. Pouco a pouco comecei a ser conhecida. Mas eu nunca imaginei isso, nem tinha estratégia para montar um negócio.
Monika: As mulheres, incluindo as mulheres trans, se destacam como líderes e profissionais de negócios, frequentemente trazendo perspectivas únicas que superam as normas tradicionais. Na sua experiência, quais qualidades as mulheres trazem para os papéis de liderança que as tornam particularmente eficazes? E vamos ser honestas, você já se viu em uma sala de reunião, olhou ao redor para os homens de terno e pensou: "Uau, se eu estivesse à frente disso, as coisas realmente aconteciam"?
Gabriela: Com certeza! As mulheres, de forma geral, são ensinadas a ter um olho mais empático e sensível para a escuta. Por conta da construção de papeis de gênero, elas são ensianadas a olhar para o outro.
Já mulheres trans, especificamente, carregam uma resiliência imensa e uma capacidade de adaptação que são fundamentais na liderança. Já me vi em diversas situações onde pensei: "Se tivéssemos mais mulheres à frente, as decisões seriam muito mais estratégicas e humanas".
Felizmente, isso está mudando, e estamos conquistando cada vez mais espaço.
Monika: Mudando para o seu ativismo, a Transcendemos desempenha um papel fundamental na promoção da diversidade e inclusão na América Latina. Você está orgulhosa do que a organização alcançou até agora ou às vezes tem aqueles momentos de "poderíamos ter feito ainda melhor"?
Gabriela: Estou muito orgulhosa do que construímos até agora. A Transcendemos nasceu de um sonho e, hoje, conseguimos impactar diversas empresas e pessoas. Mas é claro que sempre há espaço para melhorias. Eu sou bastante crítica e sempre penso em como poderíamos ter ido além, alcançado mais pessoas, gerado mudanças ainda mais profundas. Esse desejo de aperfeiçoamento é o que nos move.
Monika: Pela minha experiência, é geralmente mais fácil alcançar aqueles que precisam nas grandes cidades. Mas o Brasil é um país tão vasto, e alcançar mulheres trans em cidades menores e vilarejos deve ter seus próprios desafios. Como sua organização lida com isso e garante que o apoio chegue até as áreas mais remotas?
Gabriela: Esse é um dos desafios que mais me preocupa. O acesso à informação e às oportunidades ainda é muito desigual no Brasil. Para alcançar pessoas em cidades menores, buscamos criar conteúdos acessíveis e tentar impactar empresas em outras regiões. A internet tem sido uma aliada poderosa nesse sentido, mas sabemos que ainda há muito a ser feito para garantir que o impacto chegue a quem mais precisa. Mas eu sou apenas uma peça nessa engrenagem, muitas outras pessoas trans têm atuado como peça fundamental, como a Antra, Erika Hilton, a Transempregos comandada pela Maite Schneider e tantas e tantos outros.
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"Eu prefiro focar no impacto que podemos gerar. Mesmo quando a mudança começa de forma superficial, existe um potencial para transformação real." |
Monika: Você organiza eventos para algumas das maiores empresas do Brasil, destacando a importância da inclusão para mulheres trans no local de trabalho. Você sente que essas empresas realmente reconhecem a necessidade de mudança, ou às vezes é mais uma questão de projetar uma imagem de inclusão sem nenhuma real mudança acontecendo por trás das cortinas?
Gabriela: Há um pouco dos dois. Algumas empresas realmente estão comprometidas com a transformação e fazem um trabalho sério para tornar seus ambientes mais inclusivos. Há empresas que estão preocupadas com a contratação, em como acolher seus colaboradores, oferecer condições dignas e benefícios básicos, como nome social, auxílio terapia, entre outros. Outras, infelizmente, ainda veem a diversidade como uma questão de imagem. Mas eu prefiro focar no impacto que podemos gerar. Mesmo quando a mudança começa de forma superficial, existe um potencial para transformação real. Nosso papel é garantir que isso aconteça.
Monika: Muitas de nós nos preocupamos com a questão de "passing" e como a sociedade nos percebe. Você enfrentou preocupações semelhantes durante sua transição? E como lidou com isso? Eu, por exemplo, vivi momentos em que parecia estar em um jogo interminável de "Ela é ou não é?" jogado por estranhos no mercado.
Gabriela: Sim, passei por isso. O "passing" ainda é uma questão muito presente para muitas mulheres trans, porque vivemos em uma sociedade que constantemente nos coloca em um jogo de validação. No início da minha transição, isso me preocupava mais. Com o tempo, percebi que minha identidade não está na percepção dos outros, mas na forma como eu me vejo e me sinto. Esse é um processo constante de autoconstrução e libertação. Estamos sempre nos questionando e aprendendo a lidar com isso.
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"Minha transição também foi uma transição para as pessoas ao meu redor." |
Gabriela: Com certeza, minha transição também foi uma transição para as pessoas ao meu redor. Algumas lidaram melhor do que outras, e nem sempre foi fácil. Enquanto minha mãe, minha esposa e alguns amigos me deram total apoio e sempre estiveram do meu lado, outras pessoas se afastaram completamente por não saber lidar. Perdi muitos amigos que tinha antes da transição. Mas aprendi que o mais importante é nos cercarmos de quem realmente nos apoia e quer nos ver felizes. Hoje, me sinto muito mais forte e segura das relações que construí ao longo desse caminho.
Monika: Eu finalmente me senti livre depois da minha transição. E você? Existe um momento específico em que você sentiu que podia realmente respirar fundo e dizer "Agora, essa sou eu de verdade"? Ou foi uma realização lenta ao longo do tempo?
Gabriela: Acho que foi um processo gradual, mas houve um momento específico em que me olhei no espelho e senti que estava exatamente onde deveria estar. Essa sensação de pertencimento a mim mesma foi transformadora. A liberdade de viver minha verdade sem medo ou receio foi a maior conquista da minha vida. Me sinto tão feliz que até hoje custo a acreditar que me tornei essa mulher que sempre sonhei. Às vezes me olho no espelho sem acreditar.
Monika: Sempre fui fascinada por Roberta Close - sua história sempre me tocou muito. Você tem alguma mulher trans brasileira que te inspirou e mostrou que há uma luz no fim do túnel?
Gabriela: A mulher trans que mais me inspira é a Erika Hilton. Tanto pela oratória, ideais e estratégia, ela representa uma força incrível na luta por direitos e visibilidade. Erika é uma figura que não só quebrou barreiras ao se tornar a primeira mulher trans eleita vereadora em São Paulo, mas também mostrou que é possível ocupar espaços de poder e transformá-los em ferramentas de mudança para nossa comunidade. Além dela, outras mulheres trans brasileiras também me inspiram ao longo da minha trajetória, como a Keila Simpson, presidente da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que tem sido uma voz incansável na defesa dos direitos das pessoas trans, e a Maite Schneider, cofundadora da TransEmpregos, uma iniciativa que mudou a vida de tantas pessoas ao facilitar o acesso ao mercado de trabalho. Cada uma delas, à sua maneira, mostrou que há luz no fim do túnel e que, juntas, podemos construir um futuro mais justo e inclusivo.
Monika: O que você acha da situação atual das mulheres trans no Brasil? Se você pudesse mudar uma coisa com um estalar de dedos, o que seria?
Gabriela: O Brasil ainda é um dos países que mais mata pessoas trans no mundo. Se eu pudesse mudar algo com um estalar de dedos, garantiria segurança, dignidade e oportunidades reais para todas as mulheres trans. Precisamos de políticas públicas eficazes, inclusão no mercado de trabalho e respeito em todas as esferas da sociedade.
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"A liberdade de viver minha verdade sem medo ou receio foi a maior conquista da minha vida." |
Gabriela: Olha que legal você dizer isso. Muito obrigada e fico lisonjeada. Eu, na verdade, nunca fui muito ligada em moda e maquiagem, embora sempre quisesse ter para mim coisas do universo feminino. Mas, conforme fui passando pela transição, fui aprendendo um pouco a conhecer meu estilo, as coisas que gostava, a me reconhecer como mulher. Mas ainda hoje eu tenho muita dificuldade. Tive ajuda da minha esposa, de uma amiga consultora de estilo, mas mesmo assim ainda é um aprendizado individual.
Monika: Muitas mulheres trans estão escrevendo suas memórias. Já pensou em escrever seu próprio livro?
Gabriela: Nossa, nunca parei para pensar nisso. Mas quem sabe daqui alguns anos, ne? Acho que todas nós temos muitas coisas para serem divididas, compartilhadas. Acredito que existem bons escritores e pessoas que já fizeram e têm feito isso, como o João W. Nery, a Amara Moira, a Danielle Torres, entre tantos outros.
Monika: Se você pudesse dizer algo à sua versão mais jovem sobre ser uma mulher trans, o que diria? E se ela não acreditasse em você, o que faria para convencê-la?
Gabriela: Eu diria a ela que tudo vai ficar bem. Que ela não precisa se esconder ou tentar se encaixar em padrões que não foram feitos para ela. Diria que o futuro é dela e que, apesar dos desafios, ela vai encontrar seu espaço e ser feliz.
Monika: Gabriela, foi um prazer absoluto conversar com você. Suas ideias e experiências são verdadeiramente inspiradoras. Obrigada por compartilhá-las comigo hoje! E se algum dia começarmos um grupo de apoio para mulheres trans que superaram todos que duvidaram delas, eu te nomeio nossa presidente!
Gabriela: O prazer foi todo meu. Adorei essa conversa. Agradeço imensamente pelo espaço e pelo carinho. Espero que possamos nos ver pessoalmente em breve. E pode contar comigo para esse grupo, juntas, somos imparáveis!
Todas as fotos: cortesia de Gabriela Augusto.
© 2025 - Monika Kowalska
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