Entrevista com Alessandra Alferes


Monika: Minha querida convidada de hoje é Alessandra Alferes, transativista, criadora de conteúdo, maestrina e "mama" de um menino e uma menina em São Paulo, Brasil. É roteirista, produtora, diretora e editora do canal TransSaber e apresentadora do VídeoCast “Café Trans”. Olá Ale! Obrigada por aceitar meu convite.
Ale: Olá, Monika! Eu que agradeço pela oportunidade!
Monika: Você é uma mulher de muitos talentos. Você poderia dizer algumas palavras sobre você?
Ale: Sou musicista, maestrina pela UNESP e professora de Música, Idiomas, de Oratória e de Performance. Tenho uma Especialização em Docência e outra em Diversidade e Inclusão nas Organizações. Dou palestras pela pauta LGBTQIAPN+ em Universidades, Escolas e participo de Podcasts como convidada, além de produzir o meu próprio Podcast através do Canal TransSaber. Junto de tudo isso, sou a "mama" de um menino de 6 e uma menina de 4.
Monika: O que te inspirou a fundar o canal TransSaber?
Ale: Criei o TransSaber a partir de um desejo de trazer mais informações e conhecimento sobre os aspectos sociais, físicos e emocionais da transição de gênero, sobretudo sobre o processo de ter iniciado a Transição de Gênero aos 41, em meio a reflexões sobre a efemeridade da vida, o valor da amizade e a fragilidade do amor. Produzir os conteúdos também tem me ajudado muito a desabrochar minha feminilidade, a me reconhecer e a me empoderar de mim mesma.
Monika: Como você seleciona es convidades para o canal TransSaber?
Ale: Tenho trazer pessoas que possam contribuir com informações valiosas para a comunidade trans, sejam representatividades que advogam pela causa ou pessoas trans que possam trazer suas experiências de transição ou abordar assuntos sobre o mercado de trabalho, assim como profissionais da Saúde (trans ou cis) que atuem diretamente com a comunidade trans. Neste sentido, já tive como convidades 3 cirurgiões (Feminização Facial, Lipo/Remodelamento Costal e Redesignação Feminizante), um Psiquiatra e uma Fonoaudióloga especializada no atendimento a pessoas trans e travestis.
Monika: Que tal o Café Trans? Como você começou a trabalhar lá?
Ale: O "Café Trans" é um projeto que surgiu do próprio TransSaber. Eu quis ampliar o formato de "monólogo" de um Canal comum de YouTube para algo mais dinâmico como bate-papo e entrevistas. Podcasts estão em voga também, e gerar conhecimento neste formato pode alcançar, envolver e conscientizar muito mais pessoas.
"Na época em que me revelei, meu
medo foi perder minha esposa."
Monika: Todos nós pagamos o preço mais alto pela realização dos nossos sonhos de sermos nós mesmos. Como resultado, perdemos nossas famílias, amigos, empregos e posições sociais. Você pagou um preço tão alto também? Qual foi o passo mais difícil para você se assumir?
Ale: Na época em que me revelei, meu medo foi perder minha esposa (devido a uma possível ruptura do casamento) e a incerteza de como seria a dinâmica com meu filho e minha filha. Mas tive muita sorte. Hoje eu e minha ex somos muito amigas, ainda vivemos juntas por conta da logísticas com as crianças e temos uma relação saudável e linda com elas. Com relação à minha família, sempre tive o apoio deles, e minhas amizades também seguiram firmes ao meu lado.
Monika: Por que você escolheu Alessandra como nome?
Ale: Embora meu nome fosse Carlos Alexandre, minha mãe e meu pai sempre me chamaram de Alexandre. Alessandra foi uma escolha quase que natural. Nunca pensei nisso, realmente. Mesmo depois de me revelar trans à minha ex-esposa, ainda não tinha pensado sobre qual seria meu nome feminino. Ele surgiu naturalmente como uma variação de gênero do nome Alexandre.
Monika: Sua família ficou surpresa com sua transição?
Ale: Sim. Nunca desconfiaram. Não imaginavam que havia uma essência feminina em mim. Sei que precisaram de seus próprios tempos para compreenderem, mas sempre me apoiaram e me deram o suporte familiar necessário.
Monika: Você está satisfeita com os efeitos do tratamento hormonal?
Ale: Sim, muito. Faço TH há 3 anos e estou bem feliz com os resultados físicos e emocionais.
Monika: Dizem que somos prisioneiros da "síndrome de transição". Embora as cirurgias estéticas ajudem a superá-lo, sempre seremos julgados de acordo. Como podemos lidar com isso?
Ale: Precisamos compreender que a "Passabilidade Cis" não pode ser conquistada, pois é o olhar do outro que julga, e cada pessoa tem um olhar diferente. Não podemos nos projetar de acordo com o que é esperado de nós pela sociedade. Cada pessoa trans tem desejos e aspirações únicas com seu próprio corpo, seu rosto e sua voz, e estarmos bem com a nossa aparência e com o nosso próprio desempenhar de gênero é o que importa.
Monika: Você se lembra da primeira vez que viu uma mulher transexual na TV ou conheceu pessoalmente alguém transexual que abriu seus olhos e permitiu que você percebesse quem você é?
Ale: Sim, foi na minha infância, quando vi a Roberta Close, mas na época não compreendi o que era uma pessoa trans. Aos 6 anos já me sentia diferente, rodeada por uma sensação constante de estar performando o gênero errado, mas fui entender melhor isso somente adulta.
A primeira pessoa trans que conheci pessoalmente foi uma moça trans na Universidade, mas isso também não me influenciou a perceber quem eu era. A percepção sobre eu não me identificar com o meu gênero de nascimento sempre fez parte de mim, mas precisei de quase 40 anos até conseguir me encontrar em um momento decisivo de revelar às pessoas que eu amo quem eu realmente sou.
"A percepção sobre eu não me identificar
com o meu gênero de nascimento
sempre fez parte de mim."
Monika: Você teve alguma "irmã" transgênero ao seu redor que a apoiou durante a transição?
Ale: Não tive. Em meu círculo social atual, e depois que criei o Canal, conheci muitas mulheres trans (temos um grupo muito bonito hoje no Whatsapp), mas todas elas revelaram-se depois, ou ainda estão em um processo de descobrimento e de desabrochar.
Monika: O que você acha da situação atual das mulheres transexuais no seu país?
Ale: Triste. No Brasil, 90% das mulheres trans ainda recorrem à prostituição para sobreviverem. Segundo dados atualizados, 72% das pessoas trans não possuem o ensino médio, 56% o fundamental e apenas 0,02% estão em universidades. A evasão escolar de pessoas trans – sobretudo femininas – ainda é muito grande por conta da violência (física e psicológica) e do bullying, as afastando do ensino e dificultando seu acesso futuro a oportunidades profissionais e ao mercado formal de trabalho.
É preciso conscientizar a sociedade sobre a essência trans, naturalizar a nossa existência, só assim conseguiremos viver com mais dignidade e respeito.
Monika: Você gosta de moda? Que tipo de roupa você costuma usar? Algum design de moda, cor ou tendência especial?
Ale: Gosto sim de Moda, mas não tenho um estilo definido. Sinto que ele vai mudando conforme vou desabrochando. Gosto de muitas cores e formas, cortes e tecidos. Sou bem eclética e nada conservadora neste sentido… rsrs
Monika: Lembro-me de copiar primeiro minha irmã e minha mãe, e depois outras mulheres, tentando parecer 100% feminina, e minhas amigas cis costumavam brincar que eu tento ser uma mulher que não existe na realidade. Você experimentou o mesmo?
Ale: Sim. Todas nós temos nossos próprios modelos, que em geral são as pessoas com quem mais convivemos (família e amizades). Existimos como um acúmulo quase que inconsciente de influências gestuais e expressivas, sejamos pessoas trans ou cis. Todas nós estabelecemos, mudamos e reforçamos constantemente esses vínculos, e a partir deles desenvolvemos nossa própria desenvoltura dentro do gênero com o qual nos identificamos. Eu percebo em mim gestos e expressões da minha mãe e da minha irmã, isso é normal, fico feliz em perceber que as carrego em mim, e é justamente isso que faz com que eu seja uma mulher que exista na realidade.
Monika: Aliás, você gosta de ser elogiada pela sua aparência?
Ale: A mulher através da qual sempre me entendi é uma mulher bastante delicada, gentil. Sinto que hoje consigo transparecer esta presença de forma muito natural e, quando as pessoas me elogiam por isso, sinto-me muito bem.
Não me incomodo quando dizem que não pareço trans, ao contrário da maioria das mulheres trans. Eu fiz Feminização Facial, treinei minha voz e desenvolvi técnicas expressivas e gestuais para conseguir aflorar em mim a mulher que sempre enxerguei. Sou assim, sempre me entendi assim e desejei me desabrochar desta forma. Quando me dizem que não pareço trans, compreendo que não carrego nenhum traço físico ou expressivo que remonte ao gênero masculino e, por isso, me sinto bem em saber que não expresso a masculinidade que lutei tanto para expurgar de mim.
"A mulher através da qual sempre
me entendi é uma mulher bastante
delicada, gentil."
Todas as pessoas que conheço sabem que sou trans, pois em algum momento sempre surgem assuntos sobre diversidade e então conto a elas, mesmo quando não percebem. Tenho muito orgulho em ser trans, mas me sinto bem quando dizem que não pareço trans. Da mesma forma, não me incomodo quando algumas pessoas me perguntam se sou trans. Sei que é bem relativo, pois parecer ou não trans pode mudar de acordo com o olhar de quem julga.
Monika: Você se lembra da sua primeira entrevista de emprego como mulher?
Ale: Depois da transição não fiz nenhuma entrevista de emprego.
Monika: Quando comecei a trabalhar, meus colegas de trabalho me trataram como se a transição tivesse diminuído meu QI. Você experimentou o mesmo? Você acha que isso acontece porque somos mulheres ou porque somos transgêneros? Ou ambos?
Ale: A desigualdade de gênero ainda é muito presente na sociedade. Acredito que seja pela questão de sermos mulheres, e não por sermos trans. Nunca experimentei esta situação, mas já ouvi amigas trans relatarem terem passado por isso sim pelo fato de serem mulheres. Já ouvi também relatos inversos, de homens trans que hoje são mais ouvidos do que quando desempenhavam um papel social feminino.
Monika: O que você aconselharia a todas as mulheres trans que procuram emprego?
Ale: Primeiramente, ajustarem seus currículos (CVs). No site da Transempregos há uma área de assessoria gratuita onde ajudam pessoas trans com isso. Depois, pesquisar muito bem para aplicar para vagas somente em empresas alinhadas com questões de ESG e que abraçam a diversidade e a inclusão em geral. Ingressar em um ambiente culturalmente inclusivo, onde pessoas saibam como tratar e respeitar uma pessoa trans e onde você possa sentir-se física e psicologicamente segura, é essencial.
Monika: Você poderia me contar sobre a importância do amor em sua vida?
Ale: O amor mútuo gera cumplicidade, respeito, empatia e gentileza. Preciso de relações plenas em todos estes aspectos. Isso me conforta, fortalece e me dá esperanças.
E sigo me amando. Me olho no espelho e amo quem eu vejo, amo o que eu faço e amo a forma como faço. O amor próprio é fundamental para existirmos, e acredito que amar quem somos e viver como quem somos são os maiores privilégios da vida.
Monika: Muitas mulheres transexuais escrevem suas memórias. Você já pensou em escrever um livro assim?
Ale: Sim, mas o fiz de outra forma. Recentemente finalizei um romance onde trago reflexões sobre a finitude da vida, seus medos, emoções, as sutilezas e as fragilidades das maneiras de amar. Há muito sobre essas percepções relacionadas às aflições e angústias que vivi antes da transição, à constante busca por autoconhecimento e pelo sentido da vida. Construí essa narrativa em meio a um suspense policial e dramas familiares, mas não há personagens trans.
Atualmente estou na fase de tentar publicá-lo com editoras. Se não der certo, em breve tentarei publicá-lo por conta própria.
Monika: Qual é o seu próximo passo no presente e onde você se vê nos próximos 5 anos?
Ale: No presente seguirei com o Canal/Podcast e pretendo ingressar em alguma consultoria para realizar palestras, letramentos e treinamentos sobre DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) em empresas.
"Todo aspecto da transição requer
resiliência, seja no social, no físico
ou no emocional."
Nos próximos 5 anos desejo ter ajudado a conscientizar muitas vidas, assim como desejo que o TransSaber esteja muito maior, alcançando mais públicos e normalizando a nossa essência à sociedade, para que o mundo torne-se um lugar mais doce e acolhedor, com mais respeito, empatia e gentileza à diversidade e pluralidade humanas.
Monika: O que você recomendaria a todas as mulheres trans que têm medo da transição?
Ale: Todo aspecto da transição requer resiliência, seja no social, no físico ou no emocional. Conheça pessoas trans, faça amizades dentro da comunidade. Participe de grupos, acompanhe perfis nas redes. Quando puder, compartilhe suas dores e observe as diferentes vivências sempre com um olhar responsável e uma escuta ativa. O senso de pertencimento é essencial para nos sentirmos fortalecidas, aumentarmos nossa autoestima, nossa autovalidação ou mesmo para nos conhecermos melhor enquanto mulheres.
Monika: Minha amiga por correspondência Gina Grahame me escreveu uma vez que não deveríamos limitar nosso potencial por causa de como nascemos ou pelo que vemos outras pessoas transgênero fazerem. Nossos sonhos não deveriam terminar numa mesa de operação; é aí que eles começam. Você concorda com isso?
Ale: Concordo que nosso potencial, nossos sonhos ou nosso caráter não são definidos por nossas genitais, nem que devemos nos comparar com as conquistas de outras pessoas trans. Todas somos diferentes e por isso sonhamos diferente. Acredito que nossos sonhos começam quando conseguimos nos reconhecer como quem somos e nos tornamos capazes de amar a nós mesmas.
Procedimentos estéticos e cirurgias, em geral, ajudam sim a mitigar nossas disforias de gênero, e por isso relacionam-se com nossa autoestima, com nossa saúde e bem-estar psicológico e emocional, mas não é uma regra à pessoa trans precisar submeter-se a procedimentos para alcançar a felicidade ou sentir-se plena. Isso depende de cada mulher e sua relação consigo mesma.
Monika: Ale, foi um prazer entrevistá-la. Muito obrigada!
Ale: Agradeço imensamente pela abertura e por este lugar de fala tão valioso, querida! Estou à disposição! Um beijo!

Todas as fotos: cortesia de Alessandra Alferes.
© 2024 - Мonika Kowalska


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